Ananda Coomaraswamy
Ex divina pulchritudine esse omnium derivatur
(St. Tomás de Aquino, De Pulchro)
É dito que "a beleza relaciona-se com a faculdade cognitiva" (St. Tomás de Aquino, Sum. Theol., I, 5, 4 ad. I), sendo a causa do conhecimento, pois "uma vez que o conhecimento é feito por assimilação, e a similitude relaciona-se à forma, a beleza pertence propriamente à natureza da causa formal" (ib.). Mais adiante Santo Tomás confirma a definição de beleza como uma causa, na Sum. Theol., III, 88, 3, ele diz "Deus é a causa de todas as coisas através de seu conhecimento" e isto novamente enfatiza a conexão da beleza com a inteligência. "É o conhecimento que torna o trabalho belo" (São Boaventura, De reductione artium ad theologiam, I 3). Isto significa, é claro, que por sua qualidade de esplendor ou iluminação (claritas), a qual Ulrich de Strassburg define como o "brilho da luz formal pela qual [a coisa] é formada ou proporcionada", a beleza é identificada com a inteligibilidade: o fulgor da expressão sendo impensável separado da perspicácia. Toda espécie de imprecisão, sendo uma privação da forma devida, é necessariamente um falta de beleza. Por isso na retórica medieval é dada tanta importância à natureza comunicativa da arte, a qual deve ser sempre explícita.
É precisamente esse caráter comunicativo que distingue a arte cristã da antiga arte clássica, na qual o estilo é perseguido como um fim em si mesmo, e o conteúdo considerado apenas como um ponto de partida; pode-se dizer o mesmo da maior parte da arte moderna, a qual empenha-se em eliminar o tema (gravitas). Agostinho realizou uma clara ruptura com o sofismo, o qual ele define da seguinte maneira: "Mesmo que não seja evasivo, todo discurso que busca um ornamento verbal (sânsc. Alamkâra) que ultrapasse os limites da responsabilidade em relação ao seu peso (gravitas) é denominado sofístico" (De doctrina christiana, II, 31). A própria retórica de Agostinho "realiza um retorno de séculos, da busca do triunfo pessoal à antiga ideia de conduzir o homem à verdade" (Baldwin, Mediaeval Rhetoric and Poetic, pág. 51), à posição de Platão, quando este pergunta: "Sobre o quê o sofista torna o homem mais eloquente?" (Protágoras, 312), e de Aristóteles, cuja teoria da retórica é a de uma "intensificação do conhecimento, de fazer com que a verdade desça sobre os homens... A retórica é concebida por Aristóteles como a arte de dar efetividade à verdade; e é concebida pelos primeiros e pelos últimos sofistas como a arte de dar efetividade àquele que fala" (Baldwin, loc. cit., pág. 3). Não podemos pensar que isto se aplica unicamente à oratória ou à literatura; isto aplica-se a qualquer arte, como Platão diz explicitamente no Górgias, 503, onde novamente ele se defronta com o problema daquilo que precisa ser dito - "o homem bom, que busca o melhor quando fala... É exatamente como qualquer outro artesão... Basta que você olhe, por exemplo, para os pintores, os construtores..." A posição escolástica é, portanto, tão distante da moderna quanto da clássica tardia: pois tanto no sofismo quanto na maior parte da arte moderna, a intenção é antes de tudo agradar aos outros ou expressar-se a si mesmo. Ao passo que a arte de agradar, ou como Platão denomina, da "adulação" (Górgias), não é para a Idade Média o propósito da arte, mas um mero acessório (e para grandes pensadores nem mesmo indispensável), de forma que, como diz Agostinho, "não me ocupa agora de como agradar; estou falando de como se deve ensinar a quem deseja instrução" (ib., IV, 10). E enquanto na maior parte da arte moderna não podemos deixar de reconhecer um exibicionismo no fato de que o artista antes explora a si mesmo do que demonstra uma verdade, e o moderno individualismo justifica abertamente esse auto-expressionismo, o artista medieval é caracteristicamente anônimo e de um "comportamento discreto", e não é quem fala, mas o que é dito que importa.
Não se pode apontar nenhuma distinção entre os princípios da arte plástica e figurativa medieval e do "ornamento" simbólico e os dos "sermões" e "tratos" (*) contemporâneos, e uma indicação disto pode ser encontrada na designação "Biblia pauperum" aplicada à narrativa pictórica de temas da escritura. Como observa o Professor Morey, "A catedral... É uma exposição da Cristandade medieval tanto quanto a Summa de Tomás de Aquino" (Christian Art, 1935, pág. 49); e Baldwin: "As catedrais ainda exibem em escultura e nos vitrais o que desce em palavras dos seus púlpitos... Essa pregação demonstra as mesmas preocupações que as janelas simbólicas das catedrais, que seus capitéis entalhados, e sobretudo os aglomerados mas harmonizados grupos de seus grandes pórticos" (Mediaeval Rhetoric and Poetic, págs. 239 e 244). É portanto inteiramente pertinente observar que de acordo com Agostinho, de quem podemos dizer ter definido de uma vez por todas os princípios da arte cristã (De doctrina christiana, livro IV, um ensinamento que "tem uma significação histórica sem qualquer proporção com a sua envergadura" - Baldwin, op. cit., pág. 51), o objetivo da eloquência cristã é "ensinar, a fim de instruir; agradar, a fim de agarrar; e também, certamente, mover, a fim de convencer" (IV, 12-13); a fórmula docere, delectare, flectere, ou alternativamente probare, delectare, movere, deriva de Cícero; probare significa a demonstração de quod est probandum, o tema ou assunto da obra (1). O significado de "prazer" (delectatio) é explicado por Santo Agostinho quando ele diz que "alguém sente prazer (gratus) quando esclarece assuntos que necessitam ser compreendidos" (IV, 25). Mas no presente contexto Agostinho está pensando antes no prazer dado pelo "encanto da dicção" (suavitas dictionis) por meio do qual a verdade a ser comunicada é tornada palatável pela adição do "tempero" que, por causa das mentes débeis, não deve ser negligenciado mas não é essencial, se estivermos considerando apenas aqueles que estão tão famintos pela verdade que não cuidam de quão deselegantemente (inculte) ela possa ser expressa, desde que "é uma característica típica das grandes mentes (bonorum ingeniorum) amar a verdade que está nas palavras antes que as palavras em si mesmas" (IV, 11). E em relação àquilo que poderíamos denominar, talvez, de a severidade da arte "primitiva", as palavras de Agostinho são muito pertinentes: "Oh, eloquência, tão mais terrível quanto menos adornada; e quanto mais genuína, tanto mais poderosa; Oh, verdade, machado que fende a rocha!" (IV, 14).
A perspicácia é a primeira consideração; tal linguagem deve então ser usada de tal maneira que seja inteligível para todos aqueles a quem for endereçada. Se necessário, mesmo a "correção" (integritas) (2) da expressão poderá ser sacrificada, se o próprio assunto puder ser ensinado e compreendido "corretamente" (integre) dessa maneira (IV, 10). Em outras palavras, a sintaxe e o vocabulário estão a serviço da demonstração (evidentia: quod ostendere intendit), e não o tema a serviço do estilo (como os estetas modernos parecem acreditar). O argumento é diretamente contra uma adesão mecânica a uma pedante e acadêmica "precisão", e surge em conexão com o problema de um discurso feito a alguma audiência inculta. E significa que, em um verdadeiro ensinamento, deve-se empregar o vernáculo daqueles com quem se fala, desde que isto seja feito para o bem da coisa a ser dita, ou, como o expressa o Lankâvatâra Sûtra, II, 114, "a doutrina é comunicada apenas indiretamente através da pintura: e tudo aquilo que não for adaptado a esta ou àquela pessoa que deve ser ensinada, não pode ser chamado de ensinamento." O fim não pode ser confundido com os meios, e não existem os meios que possam ser ditos bons em si mesmos, mas somente os meios que são bons em uma dada aplicação. É do maior interesse observar que esses princípios equivalem ao reconhecimento e à sanção dessas "distorções" ou "desvios da perfeição acadêmica" representados por aquilo que se denomina de "refinamentos arquitetônicos". No caso da entasis, por exemplo, o fim em vista é provavelmente que a coluna possa ser compreendida como perpendicular e em ângulo reto. Ao mesmo tempo, a acomodação não é feita por razões estéticas, mas intelectuais; isto quer dizer que dessa maneira a "ideia" de perpendicularidade é melhor comunicada, e se o "efeito" resultante é também visualmente satisfatório, isto é mais um resultado da forma do que um propósito imediato da modificação. Ocorre o mesmo com a composição de qualquer obra; essa composição é determinada pela lógica do assunto a ser comunicado, e não para o conforto da visão, e se a visão fica satisfeita, é porque uma ordem física no órgão da percepção corresponde à ordem racional presente em tudo aquilo que é inteligível, e não porque a obra de arte tenha sido feita apenas para o olho ou para o ouvido. Uma outra maneira em que a "correção", neste caso a "precisão arqueológica", pode ser propriamente sacrificada ao fim mais alto da inteligibilidade pode ser vista no tratamento usual medieval de temas bíblicos como se eles tivessem ocorrido no ambiente em que vivem aqueles que os retratam, com o conseqüente anacronismo. É quase desnecessário apontar que um tratamento que representa um acontecimento místico como um acontecimento corrente comunica esse tema com muito mais vivacidade, e nesse sentido mais "corretamente", que um outro com um olhar pedante de arqueológica precisão que antes separa o acontecimento dos espectadores "atuais" e faz dele uma coisa do passado.
Os princípios de Agostinho não podem ser melhor exemplificados do que no caso da Divina Commedia, a qual hoje persistimos em ver como um exemplo de "poesia" ou belles-lettres, a despeito do que diz o próprio Dante sobre ela, que "a obra como um todo foi empreendida não com um fim especulativo, mas prático... o objetivo do todo é remover aqueles que estão vivendo nesta vida do estado de infelicidade, e levá-los ao estado de bem-aventurança" (Ep. ad Can. Grand., §§ 16 e 15). O criticismo corrente equivoca-se de maneira similar ao interpretar o Rig Veda, insistindo nas suas qualidades "líricas", muito embora todos aqueles que estão dentro e pertencem a, e não simplesmente estudam, a tradição védica estão absolutamente seguros da função injuntiva fundamental desses versos, e contemplam não tanto sua qualidade artística quanto sua verdade, a qual é a fonte do seu poder motivador. As mesmas confusões se repetem em nossas concepções de "arte decorativa" e da "história do ornamento". É tacitamente ignorado que aquilo que denominamos ornamento ou decoração na arte antiga e medieval e, poderíamos acrescentar, na arte folclórica, teve originalmente, e na maioria dos casos ainda tem, um valor inteiramente diverso daquele que impomos-lhe quando hoje em dia plagiamos essas formas naquilo que realmente é "decoração interna" e nada mais; e a isto chamamos de uma abordagem científica!
Na Europa, a hoje desprezada doutrina da necessária inteligibilidade ressurge em uma data comparativamente tardia em conexão com a música. Não só Josquin des Prés no século XV arguia que a música não deve ser apenas um belo som mas significar algo, mas é exatamente sobre esse ponto a refrega entre o cantochão e o contraponto centrada no século XVI. A Igreja exigia que as palavras da missa tinham que ser "claramente distinguidas através da trama do contraponto, que embrulhava o cantochão". Foi preservado um registro do bispo de Ruremonde "que afirmava que depois de ter posto a maior atenção foi incapaz de distinguir uma palavra qualquer cantada pelo coro" (Z. K. Pyne, Palestrina, his Life and Times, Londres, 1922, págs. 31 e 48). Foi somente quando os papas e o Concílio de Trento foram convencidos pela obra de Palestrina que as novas e mais intrincadas formas musicais não eram realmente incompatíveis com a clareza, que a posição da música figurada foi garantida.
Tendo em mente o que foi dito acima sobre o invariável caráter ocasional da arte, e também o que foi colocado quanto à sua inteligibilidade, é suficientemente evidente que de um ponto de vista cristão a obra de arte é sempre um meio, e nunca um fim em si mesma. Sendo um meio, ela é ordenada a um determinado fim, sem o que ela não teria raison d´être, e só pode ser vista como um bricabraque. A abordagem corrente pode ser comparada à de um viajante que, ao encontrar uma placa de sinalização, começa a admirar sua elegância, quer saber quem a construiu, e finalmente a corta e decide usá-la como um ornamento no consolo de sua lareira. Tudo bem, ela pode ser usada assim, mas dificilmente poderemos dizer que houve uma compreensão da obra; a menos que o fim esteja claro para nós mesmos, como ele o esteve para o artista, como ter a pretensão de ter compreendido, ou como poderemos julgar sua operação?
Mesmo que desviemos a obra de arte para algum outro uso que o original, então, em primeiro lugar, sua beleza estará proporcionalmente diminuída, pois, como disse acima Santo Tomás, "se elas são utilizadas para um outro uso ou finalidade, sua harmonia e portanto sua beleza não se mantêm", e, em segundo lugar, mesmo que possamos tirar um certo prazer da obra que foi retirada de seu contexto, usufruir desse prazer será um pecado nos termos da definição de Agostinho, "gozar daquilo que deveríamos usar" (De Trinitate, X, 10), ou uma "demência", como ele também chama essa visão de que a arte não tem nenhuma função senão agradar (De doc. christ., IV, 14). O pecado, na medida em que ele relaciona-se com a conduta e ignora a função última da obra, a qual é convencer e instigar (movere), é o pecado da luxúria; mas desde que nós aqui lidamos antes com uma falta estética do que uma falta moral, permitam-nos dizer, a fim de evitar implicações exclusivamente moralistas que hoje em dia são inseparáveis da ideia de pecado, que contentar-se somente com o prazer que pode derivar de uma obra de arte sem nenhum respeito ao seu contexto ou significação será um solecismo estético, e é assim que o esteta e a arte "afastam-se da ordenação à finalidade". Ao passo que, "se o espectador puder entrar nessas imagens, aproximando-se delas na carruagem de fogo (sânscr. jyotiratha) do espírito contemplativo (sâncr. dhyâna, dhï)... então ele poderá ressurgir do sepulcro, então ele encontrará o Senhor nos ares, e então ele será feliz" (Blake), o que é muito mais do que simplesmente estar satisfeito.
Notas
(*) Os tratos eram versículos cantados nas missas de réquiem e nos períodos de penitência, logo após o gradual, para substituir o aleluia, e cuja melodia é das mais ricas do canto gregoriano. (Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa) (Nota da tradução.)
(1) São Boaventura, De reductione artium ad theologiam, 17, 18 - ad exprimendum, ad erudiendum at ad movendem, "para expressar, instruir e persuadir", ou seja, expressar por meio da semelhança, instruir por meio de uma clara luz e persuadir por meio do poder." Pode-se notar que "clara luz" é lumen arguens, e que nossa palavra "argumento" é etimologicamente e originalmente "clarificação" ou "tornar brilhante".
(2) A locutionis integritas de Santo Agostinho corresponde à sermonis integritas de Cícero (Brut. 35. 132) e significa "correção da expressão". Similarmente em Santo Tomás, Sum. Theol., I. 39. 8, integritas sive perfection é uma condição necessária da beleza, integritas é "precisão" mais que "integridade" ou "integração". Tendo em mente que toda expressão se faz através de alguma semelhança, o significa da expressão é "simbolismo adequado", isto é, correção da iconografia. Com muita freqüência esquecemos que na fala tanto quanto nas artes visuais, a expressão se dá através de imagens.
In "Christian and Oriental Philosophy of Art", Ananda Coomaraswamy, Dover Publications Inc., New York, 1956,págs. 102-109.
Tradução de Roberto Mallet.